"A distância faz umas coisas
engraçadas com o coração da gente, torna-o frouxo, contamina o sangue com
emoções cruas, cria imunidade contra a razão. De muito longe, eu acompanhei, no
domingo, pelo Twitter, as notícias do incêndio na boate Kiss — “beijo”, seria a
sua tradução para o português. Beijo da morte.
Alguém escreveu, “Quando um
filho perde um pai, ele vira órfão. Quando um pai perde um filho, ele é o quê?
Nada, mais nada”.
Do banco de passageiros do meu
Chevrolet Malibu, atravessando o deserto ao longo da fronteira do México com o
Arizona, onde sou chefe de redação do “New York Times”, chorei — por gente que
nunca conheci, por futuros interrompidos.
Minha filha de 3 anos
cochilava no banco de trás.
Chorei de raiva pelas mortes
desnecessárias. Por que não havia uma luz iluminando a única saída de emergência
da boate? Por que não havia outras saídas de emergência? Por que ninguém se deu
conta da estupidez que é brincar com pólvora, ingrediente chave de efeitos
pirotécnicos, em lugares cheios, fechados e forrados com um tipo de isolante
acústico altamente inflamável?
No dia seguinte, enquanto os
mortos eram velados em um ginásio, a perícia examinava os escombros e a polícia
detinha os mais prováveis culpados: os integrantes da banda e um dos sócios da
boate. O povo tem sede de justiça. As detenções são o seu copo
d’água.
Temos raiva, mas não é raiva
que impulsiona mudanças.
Um dia após a tragédia,
prefeitos de várias cidades decidem intensificar a fiscalização de casas
noturnas, como se, de supérfluo, segurança tivesse passado a ser
necessidade.
As causas do incêndio em Santa
Maria não são únicas. Mas, mesmo neste mundo globalizado em que vivemos, lições
que poderiam ter sido aprendidas com semelhantes tragédias ocorridas em outros
países, em um passado não tão distante, não cruzaram fronteiras.
Em 2003, os escombros de uma
boate em Rhode Island, nos Estados Unidos, ainda esfumaçavam quando eu cheguei
por lá para apurar uma matéria sobre um incêndio que havia matado cem pessoas
durante o show de uma banda de rock.
O fogo começou quando uma
faísca dos efeitos pirotécnicos usados pela banda pegou no isolante acústico que
forrava o palco. As chamas se espalharam rapidamente. Uma fumaça tóxica,
asfixiante, encheu o lugar, sugando o ar de quem tentava respirar para manter-se
vivo. As luzes se apagaram; não havia como achar à saída de emergência. Houve
gente que morreu no banheiro, pensando, talvez, que a sua porta de entrada
fosse, na verdade, porta de saída.
A boate de Rhode Island estava
super-lotada. A Kiss estava “megamente lotada”, como escreveu o DJ trabalhando
na noite do incêndio, na sua página do Facebook.
Os donos da boate de Rhode
Island — um deles, na época, um respeitado repórter de televisão — responderam a
processos civis e criminais. Não admitiram a culpa, mas também não contestaram
as acusações, uma manobra legal que lhes permitiu serem condenados sem serem
julgados. O ex-repórter cumpriu pena suspensa de prisão por dez anos. O seu
sócio passou três anos na prisão. Os familiares das vítimas e os sobreviventes
receberam mais de US$ 150 milhões em indenizações.
O incêndio em Rhode Island
poderia ter sido evitado, assim como o incêndio na boate República Cromagnon em
Buenos Aires em 2004, que matou 194 pessoas 11 anos após o governo argentino ter
imposto uma séria de exigências às casas noturnas do país, entre elas a
instalação de múltiplas saídas de emergência. O ímpeto para essas exigências? Um
incêndio em uma boate em Buenos Aires em 1993, que matou 17 jovens durante uma
festa de formatura.
Na noite em que pegou fogo, a
República Cromagnon tinha alvará de funcionamento, mas não tinha extintores de
incêndio.
O tempo passa, a gente se
esquece dos perigos evitáveis, esquece das regras, esquece das leis, molha a mão
do fiscal para que ele ignore a ausência do que deveria estar
presente.
Dinheiro e cadeia são
elementos importantes do esforço de se fazer justiça.
Raiva e choro são catárticos
para o coração de quem está longe ou perto; para a dor, não existem
fronteiras.
O que causa mudanças são
regras — impostas, sim, mas de que vale uma regra imposta se ela não é
respeitada?"
Fernanda
Santos - “The New York Times”
Nenhum comentário:
Postar um comentário