sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Chorei por gente que nunca conheci


"A distância faz umas coisas engraçadas com o coração da gente, torna-o frouxo, contamina o sangue com emoções cruas, cria imunidade contra a razão. De muito longe, eu acompanhei, no domingo, pelo Twitter, as notícias do incêndio na boate Kiss — “beijo”, seria a sua tradução para o português. Beijo da morte.
Alguém escreveu, “Quando um filho perde um pai, ele vira órfão. Quando um pai perde um filho, ele é o quê? Nada, mais nada”.
Do banco de passageiros do meu Chevrolet Malibu, atravessando o deserto ao longo da fronteira do México com o Arizona, onde sou chefe de redação do “New York Times”, chorei — por gente que nunca conheci, por futuros interrompidos.
Minha filha de 3 anos cochilava no banco de trás.
Chorei de raiva pelas mortes desnecessárias. Por que não havia uma luz iluminando a única saída de emergência da boate? Por que não havia outras saídas de emergência? Por que ninguém se deu conta da estupidez que é brincar com pólvora, ingrediente chave de efeitos pirotécnicos, em lugares cheios, fechados e forrados com um tipo de isolante acústico altamente inflamável?

No dia seguinte, enquanto os mortos eram velados em um ginásio, a perícia examinava os escombros e a polícia detinha os mais prováveis culpados: os integrantes da banda e um dos sócios da boate. O povo tem sede de justiça. As detenções são o seu copo d’água.
Temos raiva, mas não é raiva que impulsiona mudanças.
Um dia após a tragédia, prefeitos de várias cidades decidem intensificar a fiscalização de casas noturnas, como se, de supérfluo, segurança tivesse passado a ser necessidade.
As causas do incêndio em Santa Maria não são únicas. Mas, mesmo neste mundo globalizado em que vivemos, lições que poderiam ter sido aprendidas com semelhantes tragédias ocorridas em outros países, em um passado não tão distante, não cruzaram fronteiras.

Em 2003, os escombros de uma boate em Rhode Island, nos Estados Unidos, ainda esfumaçavam quando eu cheguei por lá para apurar uma matéria sobre um incêndio que havia matado cem pessoas durante o show de uma banda de rock.
O fogo começou quando uma faísca dos efeitos pirotécnicos usados pela banda pegou no isolante acústico que forrava o palco. As chamas se espalharam rapidamente. Uma fumaça tóxica, asfixiante, encheu o lugar, sugando o ar de quem tentava respirar para manter-se vivo. As luzes se apagaram; não havia como achar à saída de emergência. Houve gente que morreu no banheiro, pensando, talvez, que a sua porta de entrada fosse, na verdade, porta de saída.

A boate de Rhode Island estava super-lotada. A Kiss estava “megamente lotada”, como escreveu o DJ trabalhando na noite do incêndio, na sua página do Facebook.
Os donos da boate de Rhode Island — um deles, na época, um respeitado repórter de televisão — responderam a processos civis e criminais. Não admitiram a culpa, mas também não contestaram as acusações, uma manobra legal que lhes permitiu serem condenados sem serem julgados. O ex-repórter cumpriu pena suspensa de prisão por dez anos. O seu sócio passou três anos na prisão. Os familiares das vítimas e os sobreviventes receberam mais de US$ 150 milhões em indenizações.

O incêndio em Rhode Island poderia ter sido evitado, assim como o incêndio na boate República Cromagnon em Buenos Aires em 2004, que matou 194 pessoas 11 anos após o governo argentino ter imposto uma séria de exigências às casas noturnas do país, entre elas a instalação de múltiplas saídas de emergência. O ímpeto para essas exigências? Um incêndio em uma boate em Buenos Aires em 1993, que matou 17 jovens durante uma festa de formatura.

Na noite em que pegou fogo, a República Cromagnon tinha alvará de funcionamento, mas não tinha extintores de incêndio.
O tempo passa, a gente se esquece dos perigos evitáveis, esquece das regras, esquece das leis, molha a mão do fiscal para que ele ignore a ausência do que deveria estar presente.
Dinheiro e cadeia são elementos importantes do esforço de se fazer justiça.
Raiva e choro são catárticos para o coração de quem está longe ou perto; para a dor, não existem fronteiras.

O que causa mudanças são regras — impostas, sim, mas de que vale uma regra imposta se ela não é respeitada?"
Fernanda Santos - “The New York Times” 

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