Quando adolescente, aprendi a
me proteger. Nunca ficava sozinha, se possível, e andava depressa, cruzando os
braços sobre o peito, recusando todo contato visual ou mesmo um sorriso. Abria
caminho no meio da multidão curvando os ombros para frente, e evitava sair de
casa depois do escurecer, se não fosse num carro particular. Numa idade em que
as jovens em todos os outros lugares começam a fazer suas primeiras experiências
com um estilo mais ousado de vestuário, eu usava roupas duas vezes maiores do
que o meu tamanho. Ainda não consigo me vestir de forma a parecer atraente sem
ter a sensação de estar me expondo ao perigo.
A situação não mudou quando
cheguei à idade adulta. O spray de pimenta não existia ainda e minhas amigas,
todas de classe média ou média alta como eu, carregavam alfinetes ou outros
objetos como armas no caminho da universidade e do emprego. Uma delas andava com
uma faca e insistia que eu devia fazer o mesmo.
Recusei, mas havia dias em que
ficava tão enraivecida que poderia usá-la - ou, pior ainda, alguém poderia
usá-la contra mim.
O persistente concerto de
assobios, miados, palavras sibiladas, alusões sexuais ou ameaças abertas
continuaram. Grupos de homens andavam pelas ruas vadiando, e sua forma de
comunicação eram as canções de filmes indianos que viviam cantando, repletas de
duplos sentidos.
Para deixar claras suas
intenções, mexiam a pélvis para frente quando uma mulher passava.
Não eram apenas os ambientes
públicos que eram pouco seguros. Até na redação de uma importante revista onde
eu trabalhava, no consultório de um médico, até mesmo numa festa privada - era
impossível escapar da intimidação.
No dia 16 de dezembro, como o
mundo agora sabe, uma mulher de 23 anos voltava para casa com o namorado depois
do assistir ao filme As aventuras de Pi num shopping center de Délhi. Quando
tomaram o que lhes pareceu um ônibus, os seis homens que estavam no veículo
estupraram e torturaram a mulher de maneira tão brutal que destruíram seus
intestinos. O ônibus fora apenas um chamariz. Eles espancaram brutalmente também
o namorado da jovem e jogaram os dois fora do veículo, deixando-a à beira da
morte.
A jovem não se rendeu. Ela
começara aquela noite vendo um filme sobre um sobrevivente, e provavelmente
sentiu-se determinada a sobreviver também. Então ela realizou outro milagre. Em
Délhi, uma cidade onde a degradação das mulheres é comum, dezenas de milhares de
pessoas foram às ruas e enfrentaram a polícia, as bombas de gás lacrimogêneo e
os canhões de água para expressar sua revolta. Foi o maior protesto jamais
realizado na Índia contra a agressão sexual e o estupro até aquele momento, e
desencadeou manifestações em toda a nação.
A fim de proteger a identidade
da vítima, seu nome não foi divulgado.
Mas embora ela continue sem
nome, não ficou sem rosto. Para vê-lo, bastou que as mulheres se olhassem no
espelho. A plena dimensão da sua vulnerabilidade finalmente foi
compreendida.
Quando fiz 26 anos, mudei-me
para Mumbai. A megalópole comercial e financeira tem sua carga de problemas
específicos, mas, em termos culturais, é mais cosmopolita e liberal do que
Délhi. Ainda zonza com a liberdade recém-conquistada, comecei a fazer matérias
sobre o bairro da prostituição e percorria subúrbios perigosos tarde da noite -
sozinha e usando transporte público. Acho que a minha experiência em Délhi teve
um resultado positivo: fiquei agradecida pelo ambiente comparativamente seguro
de Mumbai e resolvi aproveitar ao máximo.
Mas a jovem jamais terá esta
oportunidade. Na manhã de sábado, 13 dias depois de ter sido brutalizada, esta
estudante de fisioterapia, que sem dúvida sonhara em melhorar a vida das outras
pessoas, perdeu a sua. Morreu por falência múltipla dos órgãos.
A Índia tem uma legislação
contra o estupro; assentos reservados para as mulheres nos ônibus, policiais
femininas; linhas especiais para pedir a ajuda da polícia. Mas estas medidas não
têm tido eficiência diante de uma cultura patriarcal e misógina. Trata-se de uma
cultura que acredita que o pior aspecto do estupro é a corrupção da vítima, que
nunca mais poderá encontrar um homem para casar com ela - e que a solução é
casar com o estuprador.
Estas crenças não se
restringem às salas de estar, mas são expressas abertamente. Nos meses
anteriores ao estupro coletivo, alguns políticos de destaque atribuíram o
aumento das estatísticas sobre estupro à crescente utilização dos celulares
pelas mulheres e ao fato de elas saírem à noite. "Somente porque a Índia
conseguiu a liberdade depois da meia-noite não significa que as mulheres possam
se aventurar a sair depois do anoitecer", disse Botsa Satyanarayana, líder do
Partido do Congresso do Estado de Andhra Pradesh.
Denúncias. Mudar é possível,
mas as pessoas devem denunciar logo os casos de estupro e de agressão sexual
para que a polícia possa realizar as investigações, e os casos levados aos
tribunais possam tramitar rapidamente e não demorar anos a fio. Dos mais de 600
casos de estupro relatados em Nova Délhi em 2012, somente um levou à condenação.
Se as vítimas acreditam que receberão justiça, se mostrarão mais dispostas a
falar. Se os supostos estupradores temerem as consequências de suas ações, não
atacarão as mulheres nas ruas impunemente.
As dimensões dos protestos
públicos e na mídia deixaram claro que o ataque constituiu um divisor de águas.
A horrível verdade é que a jovem atacada no dia 16 teve mais sorte do que muitas
vítimas de estupro. Ela foi uma das raras mulheres que receberam algo parecido
com justiça. Foi hospitalizada, sua declaração foi gravada e em poucos dias
todos os seis suspeitos do estupro foram presos e, agora, estão sendo
processados por assassinato. Tal eficiência é algo incomum na
Índia.
Não foi a brutalidade das
agressões contra a jovem que tornou sua tragédia inusitada; foi o fato de que
esta agressão, finalmente, provocou uma resposta
Sonia Faleiro
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