Os trabalhadores de telemarketing são a ponta de lança do mau atendimento prestado pelas empresas no país. É o pessoal treinado para segurar a insatisfação, não deixando o problema subir para onde não há baia apertada e sim sala com vista. A função é semelhante ao capataz que fica entre o senhor e os escravos, que entende perfeitamente e concorda com a reclamação do consumidor, porque é um deles, mas tem que cumprir ordens para sobreviver.
Ou, melhor, regras que, feito a palavra de Deus, foram entregues a eles em duas tábuas de pedra sob o título: “para ser aplicado, não questionado”. É como a fórmula de Bhaskara na escola: você não entende como chegaram naquilo, mas usa mesmo assim para passar de ano. É a alienação completa do trabalhador, que não compreende o que vem antes ou depois, ou como seu trabalho se encaixa na estrutura. Apenas faz.
Há muitas semelhanças entre eles e operários de uma linha de produção fordista, daquelas mais antigas. Trabalhar de forma intensiva, dando o máximo que o corpo e a mente agüentam, respondendo a ligação após ligação, insultos após insultos, com condições precárias de serviço e uma remuneração ridícula. E põe ridícula nisso. Fora a competição estimulada internamente, em que o melhor do mês ganha um videocassete e os outros cinco melhores levam para casa uma TV a válvula – o que é muito mais barato do que garantir trabalho decente para todo mundo. Algo semelhante ocorre em fazendas de cana, em que o cortador-master recebe uma moto no fim da safra depois de perder dez anos da vida de tanto se esfolar, tornando-se um exemplo a ser seguido por um exército de facões que sonham com a moto.
Empresas de telemarketing espalham-se pelo país. Nossos governantes elogiam isso, enaltecendo como o setor emprega e gera riqueza. Multiplicam-se os sotaques ao telefone. No começo, era São Paulo e Rio de Janeiro, onde há sedes de muitas empresas. Depois, começaram a correr atrás de locais com sindicatos mais fracos e onde o custo de trabalho era menor – básico. Você pensa que está falando com alguém na Avenida Paulista, mas na verdade conversa com Palmas, no Tocantins. A tecnologia que permite voz sobre IP contribuiu e, muito, com esse processo de descentralização – que não seria ruim se não fossem suas reais intenções. Jovens ganham pouco mais de um salário mínimo para perder a sanidade e desenvolver LER/Dort em baias minúsculas de diversas capitais. Universalizamos a exploração, não os benefícios.
Para se ter uma idéia de onde estão as empresas de telemarketing, pedi para o Ministério do Trabalho e Emprego a lista de fiscalizações no setor entre janeiro de 2010 e fevereiro de 2011:
UF Açôes Fiscais Trabalhadores Registrados em operação de fiscalização
Autuações Efetuadas
AL 5
AM 2 2
BA 16 4 2
CE 35 469 12
DF 17 142 2
ES 12 88 7
GO 17 747 1
MA 7 5 6
MG 72 623 514
MS 4 96
MT 2 32 1
PA 2 1
PB 2 5
PE 10 26 4
PI 7 17 3
PR 19 280 26
RJ 73 344 46
RN 5 3 16
RS 42 2.216 41
SC 36 12 30
SE 3 1
SP 188 1.103 113
Total 576 6.212 828
Não só as prestadoras desse serviço se espalharam, como também os problemas, haja vista a quantidade de autuações, cujas principais são por excesso de jornada, desrespeito ao descanso e falta de registro trabalhista.
Um exemplo prosaico: um rapaz que trabalhava em uma empresa de call center em Goiânia pediu danos morais na Justiça do Trabalho por ter que solicitar autorização para o chefe toda vez que queria ir ao banheiro. Segundo ele, quando havia uma demanda grande de ligações, os trabalhadores eram impedidos de ir ao toalete sem uma justificativa. O caso chegou até o Tribunal Superior do Trabalho, que decidiu que um chefe que limita a ida de um empregado ao banheiro solicitando explicações não comete dano moral contra a imagem ou intimidade da pessoa. Pelo menos para o caso das operadoras de telemarketing.
A verdade é que o setor é lucrativo porque usa a força de trabalho no limite. Se contratassem mais pessoas, garantissem melhores condições e pagassem melhor, ele não seria a galinha dos ovos de ouro – como muita coisa por aqui.
Do nosso lado, só lembramos como o atendimento é ruim. Muitos culpam “a falta de treinamento dos trabalhadores”. Não sabem, ou não querem saber, que o que existe por trás é uma senzala construída com as novas tecnologias da comunicação.
Do Sakamoto
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