“E pois que, senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer cousa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida. A ela peço que, por me fazer graça especial, mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d’ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de Maio de 1500.”
Nas últimas linhas da carta que relata o descobrimento (sic) do Brasil a dom Manuel, rei de Portugal, Pero Vaz de Caminha se aproveita do cargo e da oportunidade para pedir um favor a um parente. Se a “graça” foi ou não concedida, eu não sei. Porém, a utilização do público para atender a interesses privados perdurou durante toda a nossa história – situação que permeia das grandes somas ao cafezinho trocado pela multa na beira da estrada. A banalização, muitas vezes, nos levou ao marasmo.
O que isso tem a ver com a história a seguir? Absolutamente nada. Ou completamente tudo.
Um desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região está sendo acusado de tentar favorecer o grupo JBS em detrimento da saúde de trabalhadores expostos a intenso calor no setor de abate de um frigorífico em Naviraí (MS). O magistrado teria sido instado pelo governador reeleito do Mato Grosso do Sul, André Puccinelli (PMDB), a atuar em prol da empresa e em desfavor dos empregados da planta industrial. Apurações relativas ao caso correm sob sigilo no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Reproduzo parte da reportagem de Maurício Hashizume, aqui da Repórter Brasil, sobre o assunto. A história é interessante para entender como funcionam os meandros entre economia, política e Justiça no Brasil, nem sempre acessíveis aos olhos do cidadão comum:
De acordo com a acusação, o desembargador Abdalla Jallad tomou a frente de uma articulação para autorizar a JBS a concluir a matança da totalidade dos animais à disposição no referido frigorífico, independentemente dos problemas enfrentados pelas dezenas de operários dedicados justamente ao abate dos animais. Abdalla teria sido acionado pelo governador que, por seu turno, recebera reclamações da direção do JBS – maior empresa de carnes do mundo.
Na prática, a interferência teve, segundo apuração da reportagem, o propósito de buscar convencer o conjunto dos envolvidos – especialmente os que fazem parte do Judiciário trabalhista e do Ministério Público do Trabalho (MPT) – acerca da necessidade de atender os interesses da empresa em manter o ritmo de produção em detrimento de eventuais restrições impostas para minimizar a exposição de trabalhadores a riscos.
Foi por conta desse quadro de riscos que o juiz substituto da Vara do Trabalho de Naviraí (MS), Antônio Arraes Branco Avelino, chegou a conceder liminar, em 9 de novembro, determinando a interdição imediata do setor, que chega a abater 1,3 mil cabeças por dia. O pedido de interdição teve origem no MPT, que fez uma inspeção prévia no local ainda em setembro deste ano e recomendou medidas de climatização para aplacar o calor no ambiente fechado, antes da chegada do verão. No dia 5 de novembro, o procurador Paulo Douglas Almeida de Moraes protocolou o pedido de interdição de todo departamento, depois de ter retornado ao frigorífico e ter constatado que, a despeito das advertências, nenhuma providência havia sido tomada.
No intuito de derrubar a interdição, o grupo JBS impetrou mandado de segurança com vistas à cassação da liminar. No mesmo dia 9, em pleno gabinete do desembargador Francisco das Chagas Lima Filho, relator do mandado e colega de Abdalla Jallad no TRT-24, o MPT e a JBS firmaram um acordo preliminar, com permissão para que o setor se limite ao abate das 5h às 10h30, limite sugerido pela empresa e aceito pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação (STIA) de Naviraí (MS). Usualmente, a matança avança das 5h às 14h, e a temperatura tende a se elevar mais a partir das 10h. A restrição de horário, conforme o combinado, se estenderia até esta quinta-feira (16), prazo para que a empresa pudesse adotar melhorias nas condições de trabalho.
São diversos os registros de desmaios, além de outros problemas de saúde e sintomas de mal estar derivados da exposição recorrente às altas temperaturas. Cobertas por Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), cerca de 150 pessoas matam bois dentro de um ambiente fechado que, segundo o sindicato local, chega a superar os 35 ºC no verão. Apenas no final de 2009, nove trabalhadores desmaiaram no frigorífico da JBS em Naviraí (MS). Dois deles tiveram de ser encaminhados ao hospital para tratamento dos ferimentos decorrentes das quedas sofridas após os desmaios. De acordo com Paulo Douglas, técnicos de saúde e segurança contratados pelo agente empregador classificaram a situação como de grave e iminente risco, inclusive com possibilidade de morte.
A situação crítica de sofrimento dos trabalhadores do setor por conta da quentura vem se arrastando por anos a fio. “É assim praticamente desde a inauguração do frigorífico, em 1987″, relata o presidente do STIA, Algemiro Lopes. Até março deste ano, a unidade de Naviraí (MS) fazia parte do grupo Bertin. A partir de então, passou a ser gerido pela JBS que, segundo o MPT, absteve-se de promover as mudanças sugeridas pelo órgão a partir da inspeção anterior de setembro e dos avisos correspondentes. Com a JBS no comando, mais de 300 foram dispensados e o quadro caiu de cerca de 1,8 mil para a casa das 1,5 mil empregados. “A empresa quer que o trabalhador faça a mesma quantidade, mas com menos pessoas”, cutuca Algemiro, representante sindical da categoria.
Junto com o problema do calor na matança, a insuficiência de empregados na linha de produção no frigorífico da JBS tem gerado um número elevado de lesionados, sinalizam investigações do MPT. Além disso, é possível identificar a desconsideração de atestados médicos, a incorreção na marcação da jornada e a desconsideração da jornada in itinere.
Apesar das pressões para a liberação do abate indiscriminado de cabeças de gado, o acordo que impôs limites de horário para o funcionamento do setor foi mantido até o final de novembro, quando foi instalado um climatizador no espaço. Ainda assim, conta Algemiro, a maioria absoluta (por volta de 90%) dos empregados afetados continuam reclamando do calor excessivo mesmo com a utilização do equipamento.
Diante do papel desempenhado por Abdalla Jallad, que está prestes a se aposentar por ter atingido a idade máxima de 70 anos, o procurador Paulo Douglas entrou com uma representação contra o desembargador por uso indevido de influência política e econômica para advocacia de interesses ilegítimos de agentes privados empregadores em choque com a garantia do direito básico à saúde de empregados.
Em resposta, o então presidente do TRT-24, Ricardo Geraldo Monteiro Zandona, divulgou nota oficial na qual declara que “o Tribunal, com a celeridade que o caso exigia, instaurou procedimento para apurar a denúncia e, em sessäo reservada, com a presença de representante do Ministerio Público do Trabalho, concluiu que a conduta do magistrado foi regular e pautada por suas responsabilidades institucionais”.
A nota oficial do TRT-24 foi provocada pela manifestação anterior da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), que saiu em defesa de Paulo Douglas, integrante da Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região (PRT-24) que acaba de se transferir de Dourados (MS) para a capital Campo Grande (MS). Em seu comunicado, a ANPT lembra que o TRT-24 não só arquivou a denúncia contra Abdalla, como armou um contra-ataque. Solicitou que fossem enviados ofícios ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), à Corregedoria-Geral do Ministério Público do Trabalho e ao Ministério Público Federal (MPF), para apurar a correção da conduta do procurador Paulo Douglas nas esferas administrativa e penal.
“Esse fato superveniente também fora devidamente comunicado ao CNJ, sendo requerida a declaração de nulidade do julgado e, ante os fortes indícios de fraude processual, a ampliação do pólo passivo para passar a constar todos os Desembargadores do Regional [TRT-24]“, continua a nota da associação. “A situação inspira especial preocupação porque a conduta ilícita, inicialmente praticada por um único Desembargador, foi posteriormente endossada pelo Tribunal Pleno do TRT da 24ª Região, demonstrando, portanto, aquiescência institucional com a conduta”.
Procurada pela Repórter Brasil, a assessoria de imprensa do TRT-24, entidade a qual pertencem Abdalla Jallad e Francisco das Chagas, se ateve a repassar o conteúdo da nota oficial. Já a empresa JBS reiterou que está a menos de um ano da gestão da unidade de Naviraí (MS) e alegou “nunca ter se furtado em apresentar projetos e soluções” – posicionamento que vai de encontro ao relato aspresentado pelo MPT, que esteve no frigorífico em setembro antes de solicitar a interdição do setor de abate em novembro.
O grupo JBS adiciona ainda que concluiu as obras de climatização antes do prazo estabelecido pelo acordo firmado com o MPT e que teve a produção liberada integralmente após perícia feita por auditor do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A empresa não apresentou, contudo, respostas para os questionamentos acerca do registro de desmaios dentro da unidade, da relevância da produção do pólo de Naviraí (MS) e das reprovações dos funcionários quanto à efetividade do climatizador na redução do calor. “Quanto a alegação de interferência externa feita pelo procurador do trabalho, a JBS não concorda e destaca que cabe a ele comprovar essa interferência, vez que o próprio consentiu com todos os atos feitos até agora, tanto é verdade que sequer recorreu deles”, emenda o frigorífico.
Já a assessoria de André Puccinelli afirmou peremptoriamente que “o assunto não é de conhecimento do governador” e que a nota de apoio ao procurador Paulo Douglas divulgada pela ANPT trata do assunto em termos condicionais “o que torna dificil uma resposta objetiva”. Sem “fato concreto”, prossegue membro da equipe governamental, “não há o que comentar”.
Não foram respondidas perguntas enviadas pela reportagem sobre as possíveis ações do governo estadual que pudessem se voltar para a proteção da saúde dos que trabalham no frigorífico e também sobre o volume de incentivos fiscais e outros tipos de benefícios usufruídos pela JBS.Fonte:Blog do Sakamoto.Vale a pena ler.
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